Índia olhos nos olhos

Quando partilhei na minha newsletter e redes sociais que ia à Índia fazer um retiro num Centro Ayurveda, comprometi-me a partilhar a minha experiência.

Escreveria sobre aquilo que vivi, mesmo que não fosse para partilhar, porque escrever ajuda muito a “acabar de mastigar” e digerir melhor aquilo que vivo. Mas hoje escrevo, também, para partilhar contigo.

O que vou escrever a seguir é a minha experiência neste contexto concreto de uma viagem em que “apenas” estive nos Centros Ayurveda da família Madukkakuzhy (Madukkakuzhy Ayurveda Center). Esta é uma família que já conta com oito gerações de médicos Ayurveda e que criou um espaço, que compreende três Centros (Homestay, Lake and Mountain e Healing Island), dedicados a tratar pessoas através da Medicina Ayurveda. Os centros encontram-se no Sul da Índia, em Kerala.

Nesta viagem, organizada pela Macro Viagens, tive a magnífica companhia da Isabel Silva, que é uma das pessoas mais puras, genuínas e preocupadas com o bem dos outros, que conheço. Quando lhe chamo raio de sol, sinto mesmo que é esse o brilho que a caracteriza. Onde ela está tudo fica mais bonito, ela ilumina o espaço e as pessoas. Para mim foi uma bênção.

Depois da viagem de avião, que é longa mas que se faz muito bem (fui via Dubai, na Emirates que é uma Companhia Aérea de excelência), fui recebida no aeroporto de Kochin e levada de carro até ao Centro Homestay. A viagem de carro foi toda uma experiência pelo meio de um trânsito aparentemente caótico, mas muito mais organizado do que o de outras grandes cidades onde já estive. No percurso de 2h30 não houve uma travagem, não vi nenhum carro que tivesse batido e entre buzinas e ultrapassagens constantes, chegámos bem.

A preocupação do motorista foi a de que pudéssemos ter fome ou sede. Ofereceu-nos logo garrafas de água e pelo caminho parou para comprar bananas, apesar de dizermos que tínhamos comido bem no avião e que não tínhamos fome. A permanente atenção às minhas necessidades, mesmo que não expressas, começou aqui, nesta viagem de táxi.

Como uma criança ao colo da Mãe

Poderia falar de muitos pormenores da estadia no primeiro Centro, o Homestay, que é onde vive a família Madukkakuzhy. Mas o texto e partilha rapidamente se transformariam num livro. Por isso, resumo a experiência áquilo que senti.

Neste Centro e no Healing Island, que foi para onde fui nos últimos dias, fomos recebidos com o coração. Entre sorrisos acolhedores, cerimónia de acender as chamas de um candelabro, colares de flores, orações e cuidados para que conhecêssemos os locais onde passaríamos os dias seguintes, ambas as receções foram calorosas e bonitas.

No primeiro dia no Centro experimentei algo que marcou todo o retiro e que me trouxe a um lugar de onde saí muito cedo e onde nunca mais pensei ir, pelo menos enquanto fosse capaz de cuidar de mim.

Fui tratada como uma criança que precisa de ser cuidada até ao mais pequeno pormenor.

Para fazer os tratamentos recomendados, as terapeutas vinham-me buscar ao quarto, davam-me a mão ou o braço, e levavam-me até às salas de tratamento “pela mão”. Não valia a pena dizer que podia ir sozinha ou facilitar um pouco o extremo cuidado com que era levada e tratada. De mão dada, sentia-me como nos primeiros dias de escola a ser levada pelo meu pai cuidadosamente para que nada me acontecesse no percurso.

Chegada à sala de tratamento, a primeira coisa que fazíamos era rezar (a família Madukkakuzhy é cristã). Depois, despia-me eram-me feitos tratamentos, sempre por duas terapeutas em simultâneo. Muitos dos tratamentos eram “massagens” feitas a quatro mãos. A experiência é única e sinto que em mais nenhum lugar do mundo irás encontrar terapeutas tão bem formadas.

O cuidado com absolutamente tudo era levado ao extremo, a ponto de, no final do tratamento, haver uma terapeuta que me vinha ajudar no banho, lavando-me as costas e só me deixando sozinha para finalizar o banho, sempre com as palavras “tenha cuidado, senhora”.

No final era levada para o quarto, de mãos dadas a uma das terapeutas, enquanto me diziam para ir devagar nas escadas ou em algum lugar que pudesse estar escorregadio por causa da chuva. Antes de sair da sala de tratamentos, ainda me colocavam uma pasta de plantas sobre a cabeça, enquanto murmuravam uma oração.

Passei de alguma (bastante até) resistência em aceitar que fizessem por mim coisas que eu poderia fazer sozinha, à total aceitação de ser tratada como um bebé. Ao terceiro tratamento já deixava que me mimassem e o meu corpo começou a desfrutar de um estado de relaxamento como nunca experimentei. Dois tratamentos destes por dia, induzem uma sensação de bem-estar que se torna permanente.

Muitas das terapeutas poderiam ser minhas filhas, e, no entanto, era de mim que tratavam, como se eu fosse uma criança pequena dependente dos seus cuidados.

Fora do espaço de tratamentos, todas as pessoas do Centro, cuidavam de tudo para que eu não tivesse de me preocupar com nada. Ofereceram-me dezenas de experiências, desde aulas de culinária Ayurveda, passeios a lugares bonitos, aprender a extrair a água de um coco e a fazer leite de côco com a sua polpa, vestir um Sari, uma aula de Ayurveda, ir a uma festa de um casamento indiano, jantar à luz de velas, almoços especiais de despedida, espetáculos de dança indiana e mais um sem número de experiências únicas.

Aos poucos começou a nascer em mim, também, uma alegria quase infantil. Depois de ter passado toda a vida a cuidar, a marca que esta experiência me deixou é profunda. Tão profunda que ainda não atingi a totalidade da mesma, e estou mesmo a mastigar e a integrar como é que é ser uma criança ao colo da Mãe.

Por causa de uma situação que passei na infância, comecei a cuidar dos outros aos quatro anos, na idade em que ainda deveria ser cuidada como criança. Assumi responsabilidades que não eram minhas. Foi inevitável que a minha compreensão de criança de três ou quatro anos, que passou por uma situação traumática, me tenham feito assumir funções que não me competiam.

Como é que aos 52 anos se pode desmontar tudo isto? Como voltar a esse lugar de vulnerabilidade e humildade e sentir que é normal ser cuidada?

Agradeço a cada mão que me tocou, a cada médico que me orientou, a cada senhora da limpeza que manteve o meu quarto limpo e fresco, a cada pessoa que defumou os espaços exteriores para que não houvesse mosquitos, a cada pessoa que tratou da comida, a cada motorista que me conduziu. Agradeço a cada um e a todos, porque aos poucos me permitiram voltar ao estado de completa entrega à experiência e regeneração do corpo e do espírito.

Visão da Ayurveda por quem ensina macrobiótica

Muitas pessoas têm esta curiosidade. Então Dulce, a Ayurveda é muito diferente da Macrobiótica? Sorrio por dentro de cada vez que me perguntam isto.

A Ayurveda é uma medicina milenar, desenvolvida na Índia. É reconhecida na Índia tal como a medicina alopática e complementam-se sempre que as pessoas queiram recorrer às duas. Utiliza sobretudo plantas nos tratamentos. Plantas, óleos e preparações que foram estudadas ao longo de milhares de anos.

Mas o objetivo principal da Ayurveda é igual ao da Macrobiótica: manter o corpo físico, emocional e espiritual saudáveis. O objetivo é que cada Ser Humano se possa desenvolver de forma íntegra e gozar de saúde a todos os níveis.

Nos Centros convivi de forma próxima com os médicos, são eles que dão aulas de Yoga, acompanham, indicam diariamente aos terapeutas os tratamentos. Não estão afastados, são próximos e preocupados com o bem-estar de quem está no Centro.

Eu não cheguei ao Centro com nenhum problema de saúde, não fui para me “tratar”, mas beneficiei muito de todos os tratamentos que me foram feitos. Todos os dias tinha uma consulta com o médico e o tratamento era atribuído depois da consulta de avaliação da minha condição.

E a alimentação? A alimentação tem a mesma base da macrobiótica, mesmo que se apliquem regras baseadas noutra visão (diferente do Yin e Yang a que estou habituada). Eu diria que a alimentação Ayurveda é a alimentação que a macrobiótica recomendaria a um indiano.

Onde estive há coco, banana e outras frutas tropicais. Produz-se caril cravinho, canela, malaguetas muito picantes e café. Há também arroz, batata, tomate, pimento, lentilhas, grão-de-bico. Comer local sazonal e biológico são princípios base. Tudo é cozinhado de raiz, bastante mais condimentado do que em Portugal, mas até o leite de coco é feito no momento, usando um coco fresco.

Na visão Ayurveda a análise é feita usando três Doshas. Todos temos características desses Doshas, sendo dois deles predominantes. A alimentação é recomendada olhando sobretudo para o Dosha principal.

Não faz sentido usar o mesmo tipo de alimentos que se usam na Índia num clima como o nosso. Por isso, é fácil perceber que a alimentação Ayurveda não pode usar os mesmos alimentos cá que se usam na Índia, é simples.

Nós temos mais diversidade de frutas, de leguminosas, de vegetais e usamos mais ervas frescas e menos especiarias. Neste momento até acho alguma piada à tentativa de fazer bebida de coco com coco ralado, seco, como algumas pessoas ensinam. Para quê? Não é nosso e no nosso clima não nos faz bem.

Podemos transpor para a macrobiótica a mesma análise: não faz sentido comer como um japonês estando a viver em Portugal e tendo uma base mediterrânica tão rica e forte.

No entanto, as recomendações de estilo de vida na Ayurveda são muito semelhantes às da macrobiótica. Posso dizer que já fazia tudo o que é recomendado: levantar antes das 6h da manhã, tomar sempre o pequeno-almoço, comer menos quantidade à noite, jantar por volta 18h e ir para a cama às 22h de estômago vazio. Quem conhece a macrobiótica consegue ver aqui os pontos comuns.

Não sei o suficiente de Ayurveda para fazer mais comparações e sinto que não há vantagens nenhumas em fazê-las. Para mim, a macrobiótica tem uma aplicação muito prática e já vi “milagres” acontecerem quando se sabe usar os seus princípios.

Olhos nos olhos

“Índia olhos nos olhos” foi o título que escolhi para este texto.

O olhar nos olhos foi talvez o primeiro impacto que tive quando cheguei à Índia: as pessoas olham diretamente nos olhos, sem desviar o olhar ou sentir que estão a ser inconvenientes ao fazê-lo. E abrem um sorriso rasgado de quem está feliz por te ver.

Em Portugal, as crianças pequenas também procuram este contacto “olhos nos olhos”, mas depois habituamo-nos a desviar o olhar ou a nem sequer estabelecer esta primeira ligação antes de começar a falar. Lembro-me perfeitamente dos meus filhos me pararem na rua para conversar, porque não conseguiam ir a andar e a falar sem terem esta ligação “olhos nos olhos”. Quando é que perdemos este hábito que me parece tão humano?

Visitei um país muito diferente da nossa Europa. Eu amo a cultura europeia e tudo aquilo que representa. Mas amei aquilo que me foi dado a conhecer da cultura indiana e dos indianos. Acredito que só ali é que seria possível ter a experiência que tive da forma como tive.

Regressei com a bateria carregada. Talvez só comparável ao meu telemóvel quando aparece os 100% escrito no verde do símbolo que me diz que atingiu a carga completa.

Ir aos Centros Madukkakuzhy ser tratada segundo a Medicina Ayurveda significou ser recebida por uma família que faz disto a sua Missão. Não senti nem por um instante que fizessem dos serviços que prestam um “negócio”. Pelo contrário, tudo aquilo que recebes é muito mais do que aquilo que estás a pagar com dinheiro físico, e só estando lá percebes o que quero dizer.

No Homestay senti que estive mesmo no coração desta família, desde a avó aos netos, que no final da oração da noite, te olham nos olhos e te dizem: peace be with you (que a Paz esteja contigo). No Healing Island senti-me imersa na Natureza e foi extremamente regenerador.

Desejo que seja um até já, família Madukkakuzhy e colo da Mãe Índia.

Se preferir ouvir o artigo

Deixo aqui o link para o Podcast com a leitura do artigo na íntegra.

 

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2 Responses

  1. Ler este artigo foi um bálsamo para a alma e memória. Fiz uma viagem, de 21 dias pela India não turística, programada mas quase sem rede. A diversidade é brutal, as experiências do que por lá vivi e por lá senti foram únicas até ao dia de hoje! A disponibilidade e o carinho no cuidado de quem cuida é absolutamente genuíno!
    Aquela foi a “Viagem” e apesar de me sentir europeia todos os dias da minha vida, é o meu País Estrangeiro de coração! Já lá vão muitos anos…e apesar de muitas viagens a outras paragens a Índia será sempre especial!

    1. Olá Graça
      Que bom que lhe trouxe boas memórias.
      É mesmo outra cultura e imagino a experiência marcante que deve ter tido nessa Viagem.
      Um beijinho
      Dulce

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Olá, sou a Dulce!

Tenho formações e experiência nas áreas da Macrobiótica e no Mindfulness, desenvolvi o projeto Mil Grãos, onde o foco é oferecer-lhe informações, conhecimento, prática e experiências para uma vida mais Humana, Ecológica e Espiritual.

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