Pão de Fermentação Natural feito com Massa Mãe

Índice

O que é a massa mãe (levain, sourdough, isco, crescente, massa azeda)

Se na cozinha há preparações fáceis de fazer a massa mãe ou fermento natural, é um deles. São apenas necessários dois ingredientes: farinha e água. Manter a colónia de organismos vivos a seguir a ter desenvolvido o fermento natural, também não dá trabalho, mas é necessário ter alguns cuidados de que vou falar a seguir.

A massa mãe é uma colónia de organismos vivos (leveduras e bactérias ácido-lácteas naturalmente presentes nos cereais, no ar, no ambiente da nossa casa, na nossa pele, ….) que se desenvolve quando lhe são dadas condições para tal. Este conjunto de microorganismos desenvolve uma relação simbiótica, i.e. benéfica quer para as leveduras quer para as bactérias, o que permite criar um ambiente perfeito para que ambas as espécies se desenvolvam, impedindo o desenvolvimento de bactérias e fungos nocivos.

Os cereais são extraordinariamente ricos em organismos vivos, que permanecem latentes ou adormecidos até se lhes adicionar água. Ao entrarem em contacto com a água vão ser activados e, juntamente com bactérias presentes no ambiente, vão criar o fermento natural.

Apenas uma colher de chá de fermento natural pode ter até 50 milhões de leveduras e 5 bilhões de lactobacilos e outras bactérias, e por aqui podemos perceber a riqueza deste fermento. Embora não seja possível vê-las a olho nu, podemos observar o seu trabalho quer na massa mãe, quer no fermentação da massa do pão.

É esta a colónia que é utilizada para fazer pão de levedação natural, e que tem o nome de fermento natural, levain, massa mãe, isco, crescente, massa azeda, massa velha, sourdough,…

Quando se começa um fermento natural de raiz, nos 3 primeiros dias há uma “luta” entre esta colónia que pretendemos desenvolver (leveduras e bactérias ácido lácteas) e outros fungos/bolores. Na verdade, quando me dizem: o meu fermento natural vai no terceiro dia e está cheio de actividade (bolhinhas), eu respondo: espere até ao quarto dia. Normalmente esse é o dia de viragem: ou a acidez presente no fermento natural previne o aparecimento de bolores, ou, no quarto dia surge na superfície uma camada alaranjada, verde ou cor-de-rosa que nos indica a presença de um bolor. Nesse caso, normalmente é necessário deitar tudo fora e iniciar outra vez o processo. Também pode ser possível, retirar todo o bolor, com cuidado colocar apenas uma pequena quantidade do fermento natural que estava por baixo e tentar alimentar esse bocadinho. Já ensinei este “truque” algumas vezes e a maioria delas revelaram-se com um final feliz.

Qual a diferença entre o fermento natural e fermento de padeiro?

O conhecido fermento de padeiro (o que vem em saquetas ou em cubos) é constituido por uma única levedura, a levedura de cerveja: Saccharomyces cerevisiae . Esta levedura foi isolada e é produzida industrialmente. No pão tem a função de produzir dióxido de carbono, numa levedação rápida e muito mais controlada do que quando se utiliza massa mãe. Uma fermentação mais rápida não permite nem a digestão dos amidos presentes na farinha, nem um trabalho adequado do glúten, no caso de cereais que o contêm. Por isso os produtos feitos com fermento de padeiro poderão ser menos tolerados por algumas pessoas, provocando distensão abdominal, dificuldades digestivas, e intolerância ao glúten presente nos cereais.

Quando se usa fermento natural para fazer pão, a levedação dá-se de forma menos rápida, não porque as leveduras sejam mais fracas (nada disso!!) mas porque o trabalho de digestão do amido feito pela colónia que habita a nossa massa mãe é mais lento. Isso traz imensos benefícios (escrevo sobre isso abaixo, neste artigo). Para além da fermentação natural eliminar o ácido fítico presente nos cereais um pão feito com massa mãe tem os seguintes benefícios:

  • É de fácil digestão: o glúten e o amido presentes na farinha são pré-digeridos durante a fermentação natural, como veremos abaixo. O processo de fermentação elimina anti-nutrientes (ácido fítico) presente nos cereais.
  • É apto a intolerantes ao glúten não-celíacos: o glúten é dividido em moléculas muito menores, que deixam de causar irritação num intestino sensível.
  • Apresenta baixo índice glicémico: devido à pré-digestão dos açúcares presentes na farinha.
  • É mais completo e complexo do ponto de vista nutritivo: o processo de fermentação torna todos os nutrientes mais disponíveis para absorção, e não interfere com a capacidade do intestino absorver nutrientes.
  •  É um prebiótico natural: alimenta as bactérias naturalmente presentes no instestino contribuindo para um microbioma mais diverso e saudável.
  • Maior tempo de conservação: a acidez natural produzida pelo +processo de fermentação inibe a formação de bolores

Como fazer o fermento natural?

Referi que tenho um conjunto de vídeos onde ensino a fazer massa mãe, mas deixo também aqui descrito todo o processo.

Este é o primeiro video de um conjunto de sete: https://youtu.be/nnuHQ4UC5gg

O frasco com o fermento natural não precisa de ficar num armário (é um mito!), mas não deve apanhar luz direta nem estar sujeito a temperaturas extremas. O melhor é sempre que a temperatura ronde os 23ºC, mas eu fiz o meu fermento com temperaturas mais baixas (16ºC em média), e ele desenvolveu-se bem.

Também não e necessário usar uma colher de madeira para mexer a massa mãe (mito!!). Pode usar uma colher inox.

Vai precisar de

  • uma balança de cozinha (aconselho mesmo uma balança digital); vale a pena o investimento porque ela vai ser essencial para fazer pão.
  • 2 frascos de vidro, ou de plástico próprio para alimentos, com tampa. A tampa pode ser substituída por uma gaze ou um pano limpo preso por uma fita ou elástico.
  • 2 colheres (uma para mexer e outra para limpar a primeira. Não é necessário utilizar utensílios de madeira (isso é mito!!) utilizem colheres de inox.
  • uma caneta, fita-cola ou elástico se quiserem ir marcando o crescimento do vosso fermento (opcional).

De seguida apresento todo o processo:

  • 1º Dia: juntar 50g de farinha de centeio com 80g de água num frasco; mexer bem, fechar sem ser completamente, ou colocar uma gaze ou tecido preso com uma fita/elástico a tapar o frasco.
  • 2º Dia: Observar apenas se existe atividade. Agitar ligeiramente a mistura ou mexer de forma suave com uma colher. Voltar a tapar.
  • 3º Dia: Observar apenas se existe atividade. Agitar ligeiramente a mistura ou mexer de forma suave com uma colher. Voltar a tapar.
  • 4ª Dia: Hoje o vosso fermento já deve apresentar uma atividade visível (bolhinhas na superfície ou, ao mexerem, devem perceber que há ar na massa). Chegou o momento de o refrescar/alimentar. Por isso vamos pesar 50g do fermento original (o que estiveram a fazer nos dias anteriores); juntar 80g de água; crescentar 50g de farinha de centeio integra, mexer bem e tapar sem ser completamente.
  • 5º Dia: Juntar 25g da mistura que já têm dos dias anteriores; 50g de água; 60g de farinha de centeio integral. Mexer bem, tapar e esperar que cresça. Com o resto da mistura que sobra, podem fazer crakers, juntar a uma massa de panquecas ou simplesmente descartar diretamente no lixo ou no composto.
  • 6º Dia: Fazer de 12 em 12h o seguinte: juntar 25g de fermento natural (a mistura dos dias anteriores) com 50g de água e 50g de farinha de centeio integral ou semi-integral. Misturar bem e fechar o frasco (mas não completamente) no final.
  • 7º Dia: O fermento deve estar a crescer para o dobro no espaço de 4 a 6h. A partir de agora deve repetir-se o processo do 6º dia até se ter um fermento estável, isto é, que tenha um comportamento previsível sempre igual (cresce para o dobro no espaço de 4h, por exemplo). Neste dia podemos começar a alimentar com farinha de trigo semi-integral se quisermos ter um isco de trigo (é o que eu uso sempre).

O fermento natural, pode demorar até 10 dias a ficar com força para fazer pão, mas continuará a ser um fermento jovem durante o próximo mês. Isso significa que pode não ter tanta força e, para além disso poderá conferir um sabor mais ácido ao pão. com o tempo terão o vosso fermento cheio de vida.

Algumas informações finais. Quando virem a sigla indicando para alimentar o fermento natural na proporção 1:1:1 (por exemplo) sabem o que é que quer dizer?

  • o primeiro número é a quantidade de massa mãe em gramas (se virem blogs a dizerem colheres de sopa, desconfiem!!)
  • o segundo número significa água em grama (não é ml nem colheres de sopa! Não usem essas indicações, pesem a água.)
  • o terceiro número significa farinha em grama.

Esta proporção leva-nos sempre a ter um fermento com 100% de hidratação (peso de água igual ao peso da farinha). Por exemplo, quando o alimentamos na proporção 1:2:2, o que é que estamos a fazer? Estamos a dar mais alimento à nossa colónia de leveduras e bactérias, mas os dois últimos números são constantes. Seria por exemplo: 50g de fermento natural, 100g de água e 100g de farinha.

Se quiserem deêm um nome ao vosso fermento natural. porque no fundo a vossa colónia de leveduras e bactérias é um novo “bicho de estimação”.

Como cuidar do fermento natural? (ou como não o matar:)

Há muitas pessoas que me dizem: eu já tive um fermento natural, mas não sabia cuidar dele e matei-o. É difícil matar um fermento natural, acreditem! Têm mesmo que o deixar abandonado muito tempo. E agora que já sabem o milagre que é ter uma colónia destas, tenho a certeza que nunca mais a vão deixar muito tempo abandonada.

Se o deixarem à temperatua ambiente (TA) têm que o alimentar todos os dias. Isso pode ser um problema no caso de não fazerem pão todos os dias. Mantê-lo à TA é mesmo só para quem quer fazer pão.

Então, uma das hipóteses é colocar o fermento natural no frigorífico. Podem retirar 2 dias antes de fazer pão e alimentá-la de 12 em 12h até ela voltar a estar estável para a usarem no pão.

Para guardarem no frigorífico, eu aconselho que alimentem primeiro bem o vosso fermento natural antes de lá o colocarem. Por exemplo, a proporção 1:3:3. Se usarem 20g de fermento natural, podem adicionar 60g de água e 60g de farinha. Deixam que o fermento natural entre em atividade (2h à TA) e a seguir colocam no frigorífico.

Importante: se a massa mãe for muito jovem não façam isso sem terem passado 20 dias do processo de a criarem; devem mesmo mantê-la à TA durante 20 dias para a vossa colónia estabilizar. No final do artigo partilho uma receita para aproveitar o descarte de massa mãe.

Uma das razões para acharem que a massa mãe está morta é ela aparecer com líquido à superfície, muitas vezes um líquido escuro. É normal! O vosso fermento natural está com fome, não há cpacidade de produzir dióxido de carbono típico da fermentação e o líquido separa-se da farinha. Retirem-no do frigorífico, descartem grande parte dele e voltem a alimentá-lo na proporção 1:1:1 (podem fazer uma vez a proporção 1:2:3, mais farinha do que água, mas depois voltem à proporção de partes iguais de água e farinha para terem um fermento hidratado a 100%).

Outra razão para acharem que a massa mãe está morta é o cheiro intenso, ácido, azedo e até a acetona!! As leveduras naturais vão alimentar-se do amido presente na farinha e libertar dióxido de carbono (por isso é que o fermento natural cresce). É uma fermentação dos “açúcares”, muito semelhante a outros procesos de fermentação. Se a colónia de leveduras e bactérias não for alimentada, as leveduras vão produzir, para além de dióxido de carbono uma mistura alcoólica e por essa razão o cheiro semellhante a mosto, a tinta ou a acetona. Uma massa mãe com esse cheiro não está morta, está com fome. Pode demorar algum tempo a recuperar, mas recupera. Alimente-a e tenha paciência.

Como fazer um pão de fermentação natural?

O fermento natural é isso mesmo, natural. Ao contrário do fermento de padeiro, que rapidamente cria muito ar dentro da massa, o fermento natural vai fazê-lo mas de forma mais lenta, o que trás benefícios, porque há uma pré-digestão do amido e do glúten.

Num pão de fermentação natural temos que usar as duas propriedades do glúten: extensibilidade (que confere a capacidade ao pão de expandir/crescer) e a elasticidade (que confere a capacidade ao pão de manter a forma/estrutura). Por isso há muita informação sobre “sovar o pão”, técnicas de amassar, dobras, etc. Todos estes processos permitem desenvolver uma “rede de glúten” que dá estrutura ao pão.

Quando se combina a farinha com água inicia-se o processo enzimático; são ativadas duas enzimas presentes cereais: a protease e a amilase. A amilase, transforma o amido dos cereais (farinha) em açúcares mais simples (glicose e frutose). Estes açúcares simples vão alimentar as leveduras presentes no fermento natural. A digestão que as leveduras do fermento natural fazem dos açúcares produz dióxido de carbono, num processo de fermentação aeróbica longo. Os alvéolos formados no miolo do pão, que o fazem expandir durante a cozedura, são o resultado dessa digestão do amido. As bolhas ficam presas na rede de glúten formada durante o processo de amassar o pão.

Mas o que é que torna o pão de levedação natural único? Neste pão não existem apenas leveduras a alimentar-se do amido, existem também um conjunto de bactérias ácido-lácteas que consomem outro tipo de açúcar em que a farinha também é rica: maltose. Nem todas as leveduras conseguem metabolizar a maltose, e os lacto-bacilos tornam este açúcar disponível para as leveduras.

A outra enzima, a protéase quebra as ligações da proteína presente na farinha, o glúten (gliadina e glutenina), o que faz com que sejam criadas moléculas menores que não causam desconforto a nível do sistema digestivo. As bactérias têm aqui um papel fundamental, porque propiciam a de degradação (digestão) de proteínas pelas enzimas.

É agora fácil perceber as vantagens deste pão em relação ao pão feito com fermento de padeiro ou leveduras comerciais. Neste pão temos a simbiose perfeita entre lacto-bacilos e leveduras, ambas a trabalharem a nosso favor, a pré-digerirem a farinha para que ela não se torne nociva para o nosso sistema digestivo.

Se já fez o seu fermento natural, pode usar esta “receita” base para fazer um pão de trigo:

  • 500g de farinha de trigo T65
  • 300g de água (60% do peso da farinha)
  • 100g de fermento natural (20% do peso da farinha)
  • 8g de sal

Sabem qual é o cereal típico da Europa? O Pão (de fermentação natural).

Por isso continuem a comer pão, comam pão de boa qualidade.

Com Amor,

Dulce da Mil Grãos

Comentários

7 respostas

  1. qual a quantidade ideal para começar a fazer uma massa mãe para uma padaria tenho que ter pela sua receita 20% de massa mãe, portanto uma receita de 3 quilos de farinha são precisos 600 gramas de massa mãe, por isso tenho que começar com quantidades bem maiores . certo ?
    tenho uma padaria em Portugal na cidade do Porto

    1. Olá Fernando.
      Os 20% são uma referência e para começar é ótimo. Pode inocular a massa com muito menos quantidade de massa-mãe, entre 5 e 20% ( até pode ser inferior a 5% para levedações ainda mais lentas). Se quiser fazer 3 kilos de farinha e usar 20% de massa-mãe, são 600g de massa-mãe. Felicidades para si e muito sucesso na Padaria.

    1. Olá Dafne.
      A autólise não é obrigatória, é um passo opcional que, caso amasse à mão, acaba por facilitar a extensibilidade da massa. Mas se sabe o que é a autólise, pode fazer, claro. Depois de juntar tudo, deve sovar a massa até atingir o ponto véu, deixar levedar, moldar, deixar levedar mais um pouco e depois assar em forno bem quente (tipicamente 210 graus Celcius, mas poderá ser um pouco menos, depende do forno).

  2. Eu comecei há pouco com o pao em casa e vai melhorando ao poucos.

    Este artigo deu uma ajuda 🙂

    Só um reparo.
    “não é ml nem colheres de sopa! Não usem essas indicações, pesem a água.”
    1ml = 1 grama, no caso da água. Portanto pode ser medido em ml em vez de pesado que dá igual. O resto de medir em colheres será algo mais a olho e nao aconselhável para que tem pouca experiencia.

    Obrigado 🙂

    1. Olá Carlos.
      Tem toda a razão. No entanto, o problema está nos copos medida que não são precisos. Numa balança digital com várias unidades, algumas têm ml, 300ml de água correspondem a 300g.

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Dulce

Com formações e experiência nas áreas da Macrobiótica e no Mindfulness, desenvolvi o projeto Mil Grãos, onde o foco é oferecer-lhe informações, conhecimento, prática e experiências para uma vida mais Humana, Ecológica e Espiritual.

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